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domingo, 3 de abril de 2011

Realidade e Luto (resenha)


Resenha de Karina Codeço Barone, Realidade e luto: um estudo da transicionalidade, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 128 p. 



"O passado não é aquilo que passou,
É aquilo que fica do que passou."
Alceu Amoroso Lima

O livro de Karina Barone agradará certamente ao leitor interessado no tema, pois com linguagem elegante e despojada expõe com clareza as idéias de Winnicott. A autora, a partir de sua experiência com crianças gravemente enfermas, repensa o trabalho do luto, levando em consideração a importância que ocupa, na obra de Winnicott, a ilusão como constitutiva da subjetividade humana.

Afirma que a constituição do tempo transicional (Safra, 1999) é  indispensável para o trabalho do luto, na medida em que é possível manter uma síntese entre a fantasia e a realidade. Isso ocorre porque, devido à manifestação do fenômeno transicional, o sujeito não se aliena nem na alucinação, nem na realidade.

Expõe esse aspecto como fundamental  no seu trabalho com crianças vítimas de severo trauma.

Barone apresenta uma investigação a respeito da maneira pela qual Winnicott compreende o contato com a realidade. Ela constata que apenas quando os pacientes conseguem elaborar suas perdas é que se torna possível obter a diminuição dos sintomas depressivos apresentados.

Sobre o trabalho do luto, o livro de Dráuzio Varella Por um Fio corrobora a opinião da autora;  suas reflexões norteiam-se pela crença no seguinte princípio: “mais do que curar, o objetivo fundamental da medicina é aliviar o sofrimento humano”. Acredito que esta é a finalidade de seu trabalho.

Ela não deixa passar despercebida a influência que, no princípio, a teoria de Melanie Klein teve no pensamento winnicottiano, sobretudo o estabelecimento da posição depressiva que possibilitaria a integração de amor e ódio, ainda que depois Winnicott tenha trilhado um outro caminho.

Ao longo do livro, discute como o tema do contato com a realidade havia sido desenvolvido por Freud e  Ferenczi, objetivando mostrar a herança ferencziana presente no Grupo Independente e em Winnicott. Investiga também a teoria do desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott, que considera precursora da teoria dos objetos e fenômenos transicionais. Para Barone, essa última constitui uma preciosa ferramenta para investigar, sob uma nova ótica, alguns temas psicanalíticos de relevância. As  contribuições a respeito dos processos maturacionais do indivíduo introduzidas por Winnicott, no que se refere à apreciação da realidade, recebem também tratamento cuidadoso. A partir da análise de pacientes “difíceis”, pacientes que adoecem em decorrência de uma situação traumática, a autora mostra como a técnica interpretativa apresentada por Winnicott diferencia-se da proposta interpretativa de Freud e daquela de Ferenczi. Contudo, não deixa de chamar a atenção para as heranças freudianas e ferenczianas, discussão que faz com delicadeza ao longo do livro.

Barone alerta para o texto de 1933, “Confusões de língua entre os adultos e a criança”, no qual Ferenczi discute a relação assimétrica entre o adulto e a criança, uma vez que a criança fala a linguagem da ternura e o adulto a da paixão. Segundo a autora, Winnicott deu um passo à frente de Ferenczi porque propõe uma relação não traumática, baseada na existência de um ambiente potencialmente bom para atender às necessidades da criança.  Destaca tanto a maneira pela qual a teoria de Winnicott apresenta conexões com a obra freudiana, quanto os momentos de maior independência dela. Sugere que essa foi tarefa de difícil sustentação, uma vez que o próprio Winnicott, em diversos momentos, manifesta-se como seguidor de Freud. Assim mesmo, a autora reconhece que há uma sistematização da influência de Freud em Winnicott.

Sobre o desenvolvimento emocional primitivo e a experiência compartilhada entre mãe e bebê, aspecto relevante  na teoria e que ocupa todo um capítulo do livro, cito um verso do poeta Mário de Sá Carneiro1 que sintetiza, como sabem fazer os poetas, o “entre” na teoria de Winnicott:

Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio”

Contemporâneo de Sá Carneiro, Fernando Pessoa2, em seu poema “Eros e Psique”, nos oferece em imagem poética a compreensão teórica a que só a emoção pode dar sentido.

“Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um infante, que viria
De além do muro da estrada”
(...)
E inda que tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia

A idéia central em Winnicott é baseada na teoria dos fenômenos transicionais, pois esta conduz a uma nova compreensão a respeito do indivíduo com a chamada realidade externa. A experiência de ilusão é uma trégua na perpétua luta para manter separadas realidade e fantasia, diz Barone.

Gostaria de citar aqui o filme de W. Allen A rosa púrpura do Cairo para ilustrar essa experiência. O filme conta história de uma mulher infeliz no casamento e que nos mais intensos momentos de angústia se refugia no cinema. Ela apaixona-se pelo personagem principal de um filme, que, não por acaso, era fisicamente idêntico a seu marido. um dia, na sua ilusão, esse personagem sai da tela e lhe diz: “Vem, fica comigo”, mas, sábia e tristemente, a mulher responde: “Eu não posso ficar com você, eu tenho que ficar com ele.”

Sobre o espaço potencial, Barone diz na página 82 de seu livro: “Com o objetivo de compreender a fenomenologia dos objetos e fenômenos transicionais, há a necessidade de postular tanto uma nova modalidade de  relação entre dois pólos da realidade – a experiência de ilusão – quanto a existência de uma terceira  área de experiência – o espaço potencial”. O “agora eu era” das brincadeiras infantis, eu diria.

A relação satisfatória com a mãe permite que o mundo possa ser permeado por aspectos relativos aos fenômenos transicionais e, dessa forma, ele passa a ser um espaço disponível a ser habitado pelo sujeito. Neste momento, Barone faz uma reflexão sensível e, a meu ver, bastante apropriada sobre o desenraizamento, citando o comentário de Peter Szondi3:

“... em Paris, na comunidade dos judeus alemães foragidos do nazismo, estes conversavam sobre os países para onde deveriam emigrar: Inglaterra, Suíça, Estados Unidos. Um deles disse partir para o Uruguai – ao que todos, aturdidos, inquiriram: 'Mas por que tão longe?'. A resposta foi: 'Longe de onde?'. Perdido um lugar de ‘origem’ e ‘pertencimento’, dispersa-se a história e a subjetividade, com que todos os lugares se equivalem”.

Essa história comovente faz-me lembrar de um jovem que dizia que, quando criança, era considerado manhoso, mas não chorava porque a mãe se ausentava e sim porque se sentia sozinho. Talvez esse rapaz/menino, tenha se sentido sempre estrangeiro nessa terra/mãe, e necessite elaborar essa erradicação real ou imaginária que lhe proporcione sustentação para enfrentar a vida e se responsabilizar por ela.

Cito outra vez a autora, que assim finaliza seu livro: “...eu precisava encontrar uma forma de trabalhar psicoterapeuticamente, apesar da doença. Para tanto, a doença não poderia ser um diferencial na minha atuação clínica. Contudo, a doença, este dado da realidade dos pacientes, não poderia ser por mim ignorada. Assim, era necessário suportar a natureza paradoxal dessa situação, e buscar um equilíbrio entre levar em conta a realidade e não sucumbir diante dela. Como procurei discutir ao longo desse livro, entendo que esta condição psíquica passa pelo estabelecimento de um contato saudável com a realidade e pelo trabalho do luto, por intermédio dos fenômenos transicionais.”

Diria que, para justificar suas opiniões, Barone se refere a um grande número de autores, o que, apesar do aparente excesso, pode ser justificado pelo fato de o livro ter sido produto de sua dissertação de mestrado e pela engenhosidade da autora em circular pelas diferentes teorias e postulações sempre orientada pelo fio condutor. Ressalto outrossim que deste trabalho surge uma jovem autora séria e talentosa que certamente trará muitas contribuições à literatura psicanalítica.

NOTAS
1 Sá Carneiro, Mário de, Dispersão – 12 poemas, Lisboa. 1914.
2 Pessoa, F., Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1995, p.181.
3 Szondi, P., in Matos, "A experiência: narração e morada do homem" (2001) in Jornal de Psicanálise do Instituto de Psicanálise da SBPSP, São Paulo, 34 (62/63), 69-75, 2001.


Darcy Haddad Daccache é psicóloga e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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